Com preços mais altos em alimentos comuns afetados pela inflação, ultraprocessados também ganham espaço, mas podem gerar consequências à saúde no longo praz
— Isso aí é o que dá, se colocar mais, vai passar do dinheiro que a gente tem — alerta o reciclador Giovani Silva de Almeida, 37 anos, ao açougueiro que ensaca os pés de galinha comprados no Mercado Público de Porto Alegre.
Junto da esposa, a também recicladora Roselaine Beatriz Silveira, 32 anos, ele se desloca do bairro Glória, na Zona Sul, em busca de preços baixos e opções à carne bovina, que deixou a mesa da família há algum tempo. Além dos miúdos de frango, os ossinhos de porco são outra opção frequente para o casal.
— É barato, mas eu gosto muito também — confessa Roselaine, apesar de afirmar que compraria carne bovina se o preço não estivesse tão alto.
No local onde Giovani e Roselaine compravam, apesar da palavra "carne" estar no nome do estabelecimento, rara era a placa com preços de carne bovina — exceção era uma pequena sinalização ao lado da banca com o preço da carne moída de segunda. Os destaques ficavam por conta de cortes bem menos nobres, como panceta, pescoço, pés de galinha e mondongo. Antes relegados aos cantos dos balcões, agora estes itens estão em grandes bacias que ocupam a maior parte do espaço no mostruário alimentício. Carne bovina pouco se vê.
Inflação
O cenário não é novidade e nem está perto do fim. A inflação de setembro foi 1,16%, conforme o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). O levantamento é divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O IPCA, aliás, acumula alta de 10,25% em 12 meses. Mas, o cenário é pior para as famílias mais pobres. O Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), que mede a inflação apenas para famílias com entre 1 e 5 salários mínimos de renda, tem alta de 10,78% nos últimos 12 meses.
E como isso tem impactado no bolso e, principalmente, na mesa dos brasileiros? Com a mudança nos hábitos de consumo. Itens do dia a dia, como arroz, feijão e carne, tornaram-se menos frequentes nas refeições. A mudança no perfil de compra no açougue já é perceptível nas estatísticas. A carne bovina, por exemplo, atingiu o menor patamar de consumo desde 1996 (25 anos atrás), quando a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) iniciou a série histórica. Em 2021, a estimativa da Conab é de que o brasileiro consuma 26,4 quilos de carne bovina ao ano — redução de 13,72% em relação a 2019, último período antes da pandemia.
Frango e suíno
As alternativas mais conhecidas, como a carne de frango ou suíno, não abarcou totalmente quem deixou de comer carne bovina. O consumo de aves até cresceu em 2021 (49,7 quilos por habitante/ano), quando comparado com 2019 (46,4 quilos por habitante/ano). Mas, é menor do que em 2020, onde a média era de 49,9 quilos por habitante ao ano. Já a carne suína vem para o terceiro ano de queda no consumo. Em 2019, eram 15,8 quilos ao ano para cada pessoa. Caiu para 15,3 quilos em 2020 e agora está em 15,4 quilos.
A razão disso é que com os preços dos três itens subindo, não há como optar entre um e outro, mas sim, partir para uma quarta opção. Só que pelos indicativos do IPCA, os caminhos nesse caso também estão ficando mais caros. Na comparação entre setembro e agosto, por exemplo, o ovo fechou com alta de 2% no país. A salsicha, outra opção, teve alta no IPCA de 1,78%. A linguiça _ mais conhecida como salsichão no Rio Grande do Sul _, apresentou a menor alta no preço entre os três itens, com 0,95%. Uma boa notícia e é em relação ao arroz, que teve queda de 0,97% no preço em setembro, pelos dados do IBGE.
Muita pesquisa para economizar
Não é porque a carne bovina saiu do cardápio que as outras opções podem ser adquiridas em qualquer lugar. A reportagem encontrou cortes como o mondongo a quase R$ 22 por quilo. Pés e pescoço de galinha chegam quase ao R$ 8 cada quilo. Para economizar, até alguns deslocamentos entram na conta. É o caso da dona de casa Ivone Conceição, 67 anos. Ela vem da Vila Elizabeth, na Zona Norte, até o Mercado Público, no Centro. No prédio centenário, roda por algumas bancas até achar o melhor preço. A economia de R$ 1 no quilo já é motivo de comemoração.
— Comprei pezinhos de porco e mondongo. Carne está bem difícil, antes eu enchia meu freezer, hoje é isso que dá para comprar — lamenta ela.
Ultraprocessados ganham espaço
As mudanças na alimentação podem ter consequências no longo prazo, principalmente, com o excesso de alimentos ultraprocessados sendo consumidos no lugar de produtos menos industrializados. Uma pesquisa do Datafolha, encomendada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), mostrou que em 2020, os brasileiros de 45 a 55 anos consumiram mais alimentos ultraprocessados. Nessa faixa etária, o consumo era de 9% em outubro de 2019, enquanto em junho de 2020, durante a pandemia, saltou para 16%.
Estudos da Universidade de São Paulo (USP) publicados em agosto de 2020 apontaram que o consumo de ultraprocessados aumenta em 26% o risco de obesidade. Além disso, aumenta o risco de sobrepeso, obesidade e circunferência abdominal elevada em até 34%, de síndrome metabólica em 79%, de dislipidemia (níveis elevados de gorduras no sangue) em 102%, de doenças cardiovasculares em até 34% e da mortalidade por todas as causas em 25%.
Os ultraprocessados são alimentos que costumam ser baratos e de fácil acesso, como salgadinhos, refrigerantes, bolachas recheadas, margarina, balas e doces, entre outros itens.
Macarrão
Um exemplo é o macarrão instantâneo, uma opção sempre muito barata e prática, mas pouco saudável. E, agora, nem tão barata. Com a demanda pelo produto aumentando, a inflação já mostra o macarrão instantâneo com alta de 1,85% em setembro, na comparação com o mês agosto. O consumo deste alimento está em alta no país. Conforme a Associação Mundial de Macarrão Instantâneo, o Brasil consumiu cerca de 2,7 bilhões de porções de miojo em 2020, uma alta de 11% em relação ao ano anterior e acima da média global de 9,6%. Os brasileiros ocupam a 10ª posição no ranking mundial de consumo do alimento e a liderança na América Latina pelo quinto ano consecutivo.
Daniela Sandi, economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), conta que num primeiro momento, os brasileiros iniciaram a busca por opções ainda dentro do açougue, mas com a alta dos alimentos muito acima da inflação, outras opções acabam tomando espaço também:
— Boa parte da população não consegue mais consumir carne. E a substituição por frango, suíno e até por ovos também não é um opção em razão do preço que se elevou.
O Dieese divulga mensalmente o levantamento com preços da cesta básica no país. O conjunto de 13 alimentos, que inclui carne, arroz, feijão e outros itens tem alta acumulada de 21,62% nos últimos 12 meses, em Porto Alegre, conforme a última pesquisa, divulgada no início de outubro.
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