Por: Natália Magalhães Musicoterapeuta - AMT-RS 421/2008
Com o desenvolvimento da neuroimagem e da compreensão do processamento musical no cérebro, tornou-se possível também ampliar o campo de atuação da musicoterapia. Sobretudo, poder compreender o que acontece no cérebro de um indivíduo com Transtorno do Espectro Autista (TEA) que o faz responder tão positivamente ao estímulo musical. Consequentemente, há uma maior indicação da musicoterapia como intervenção terapêutica para diferentes transtornos do neurodesenvolvimento, incluindo o TEA. Atualmente, compreende-se que o processamento da música não possui uma região específica no cérebro, mas sim, ativa diversas áreas. O que justifica, por exemplo, o motivo de a música ser uma ferramenta muito eficaz em processos de reabilitação, auxiliando o cérebro no processo de neuroplasticidade e, consequentemente de novas aprendizagens. A música promove uma ativação límbica e de estado de alerta, transformando-a em um estímulo que gera muito prazer e padrões excitatórios a quem divide uma experiência musical. Portanto, para uma criança TEA que apresenta alguma desordem de processamento sensorial, através da música se torna possível experienciar estímulos de desconforto ou aversivos (texturas, movimentos, sons). A música, desta maneira, possibilita experienciar um novo ou aversivo estímulo. Em 1943, quando Léo Kanner apresentou os primeiros casos clínicos identificados como autismo, foram descritas também as relações destes indivíduos com a música: capacidade de cantar com grande aproximação melódica, discriminação de diferentes peças musicais, reconhecimento do compositor da peça ao ouvir as primeiras notas serem executadas, facilidade para a memorização de canções. Atualmente, muitos dos encaminhamentos para o atendimento de musicoterapia ocorrem após relatos muito próximos a estes apresentados por Kanner. Sabe-se das dificuldades comunicativas e de socialização que acompanham o diagnóstico. Entretanto, quando o familiar, cuidador ou profissional da equipe multiprofissional que atende aquela criança utiliza-se de música, surpreendentemente há uma diferente resposta. Pode ser um olhar ou a sustentação desse durante toda execução de uma canção. As atividades de vida diária são realizadas com maior qualidade quando há uma canção que antecipa ou guia a sequência de ações. Na experiência musical que a família muitas vezes ouve a voz de sua criança. Voz esta na forma de palavras ou de frases, sejam elas em português ou em outros idiomas. Na música podem ser adquiridos fonemas e vocabulário, inicialmente sem funcionalidade, sendo apenas combustíveis para uma zona de conforto auditiva. Mas é o ponto de partida para a chamada desconstrução musical, a transformação dos materiais musicais em verbais, possibilitando a comunicação daquela criança para além do musical. Estas são as bases que nos permitem compreender a existência de uma modalidade terapêutica que utiliza da música amplamente inserida nos planejamentos terapêuticos do TEA de diferentes faixas etárias. A musicoterapia consiste em um encontro musical, construído por um profissional especializado e treinado para decodificar comportamentos, respostas, diálogos e interações musicais, estabelecendo relações com características do neurodesenvolvimento que muitas vezes configuram diagnósticos. Trata-se de uma modalidade terapêutica construída na música, no campo metafórico e, muitas vezes abstrato para aqueles que não são alfabetizados musicalmente. Por isso a importância da figura do musicoterapeuta, que difere de um educador musical ou de um cantor/ instrumentista. Há vários objetivos que podem ser trabalhados na Musicoterapia: estimular a comunicação verbal, gestual; ampliar vocabulários verbais, diminuir zonas de conforto auditivas e estereotipias verbais. Auxiliar na modulação da cena auditiva, diminuindo a sensibilidade auditiva (muito comum no TEA) e auxiliar na elaboração de recursos emocionais e comunicativos para gerenciar situações onde há frequências sonoras adversas. Trabalhar aspectos cognitivos como memória, tempo e qualidade de atenção, pré-requisitos para diversas atividades acadêmicas. Estimular a socialização e a comunicação social, construindo recursos comunicativos adequados para diferentes situações, principalmente as quebras de rotina. Construir repertórios musicais para diferentes momentos da rotina, sejam eles estressores ou não. Muitas vezes estes repertórios podem estar relacionados aos conteúdos escolares, de modo a auxiliar no processo de aprendizagem. A musicoterapia pode ser também espaço de expressão, onde sentimentos e emoções por vezes tão abstratos e sem forma são exteriorizados na busca da construção de sentido. É espaço onde a criança muitas vezes relata pela primeira vez experiências de bullying vividas na escola, condomínio ou pracinha. Experiências que, para alguém com dificuldades na comunicação social e empatia, se tornam incompreensíveis. A autoeficácia gerada em um processo musicoterapêutico constrói memórias afetivas tão significativas no TEA que pode se transformar em uma ponte entre a reabilitação e a inclusão deste indivíduo. Pois, nada melhor que alguém com zona de conforto visual, hiporresponsividade e/ou procura sensorial auditiva para se desenvolver habilidades em algum instrumento musical. O hiperfoco em um determinado período da história da música pode despertar o interesse em adquirir um volume cada vez mais crescente de informações. Na musicoterapia, aspectos que poderiam reforçar padrões patológicos e sem funcionalidade, são transformados e ganham um novo sentido. Se inicialmente, esta aproximação com a música é utilizada como meio para estimular áreas em atraso, ao longo do processo musicoterapêutico há uma transformação, modificação de padrões de resposta. A música então se transforma em ferramenta ou meio para a inclusão, transpondo as paredes da sala de atendimento e ocupando espaços da vida social.
Natália Magalhães Musicoterapeuta na Clínica Interligar (Porto Alegre-RS) AMT-RS 421/2008 nat_mag@hotmail.com / (51) 21039343
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